1942 - AQUI COMEÇA UMA HISTÓRIA DE VERDADE
- Antônio Isaías Ribeiro
- 23 de jan. de 2019
- 6 min de leitura
Atualizado: 15 de fev. de 2022
O mundo se achava em guerra desde que a Alemanha invadira e ocupara a Polônia em setembro de 1939. Por toda parte imigrantes alemães passaram a ser tratados como inimigos. E, enquanto o governo brasileiro sofria pressões para tomar posição contra a Alemanha, estilhaços muito fortes da guerra chegavam a latitudes distantes do seu epicentro, mas muito perto, pertinho mesmo da população nativa das ilhas do arquipélago de Cairu.
Cairu, 31 de Dezembro de 1941, quarta-feira.
Quando o sino do relógio do Convento marcou, primeiro em som leve e agudo, os quartos de hora para em seguida, em som grave e forte, marcar as badaladas da meia noite, a procissão da Missa do Ano Novo ingressava na Matriz do Rosário, num ritual que se repete desde o século XVI, quando a Matriz já era “uma igreja bem concertada”. Mais trezentos e sessenta e cinco dias se passaram rápida e insensivelmente, mesmo anotados por aquele grande relógio central que comanda a vida e o cotidiano com todas as atividades de todos os habitantes da pequena cidade.
Janeiro do novo ano encontrou a cidade no seu cotidiano marcado pela mesma continuidade que amarra a vida do homem à existência das coisas, estando as duas regidas pelo ritmo da natureza num mistério que encanta e que aqui se move sob as sombras alegres de uma cultura que nos passaram ibéricos e africanos – colonos e escravos – já faz séculos; cultura que gerações nativas de nossas ilhas, gerações de homens e mulheres abnegados, tomaram em seus ombros e nos legaram como aquela pérola de imenso valor. Que “aquele que a encontra vai, vende todos os seus bens e volta pra compra-la”.
No alvorecer daquele ano já distante, as práticas por aqui ainda eram somente comunitárias e determinadas por ritos e tradições, inspiradas pelo ideal de vida pobre, ativa, apostólica e missionária dos frades e pelas máximas de Paz e Bem da regra franciscana. A conduta pública de agentes do poder, absolutamente republicana; nunca conforme o cálculo medido de interesses e vantagens individuais. Continuou assim, até chegar aquele tempo politicamente atrasado e socialmente injusto! A cidade era somente da gente nativa e o nativismo, um sentir de pertencimento que identificava a todos. De lá para cá, a cidade assistiu a mais que um tempo de mudanças; passou por uma mudança de tempos!
A festa de Reis, dali a uma semana já movimenta a cidade. Alfaiates e costureiras alongam as horas e apressam o ritmo para entregar a roupa nova de seus fregueses. Ainda que seja de burgariana ou de chita, o vestido das meninas precisa ser novo! Seu Zé de Té, que ganha o seu sustento e o da família consertando e engraxando sapatos, já corta a Rua do Fogo duas vezes ao dia, buscando da Rua Direita os sapatos de seus fregueses. Os mais velhos querem sapatos limpos para a missa de festa; os rapazes, para o baile da noite no Sobrado Grande. Com seus salões iluminados por candeeiros de manga (malha metálica que aumenta a intensidade da luz) o Sobrado Grande, vai, por algumas horas, resplandecer das sombras do casario colonial da Rua Direita. É um tempo também em que se consome mais daquela “agua de flor” que “muito ‘melhor, ah!” da venda de Seu Gabriel Pacheco, naquela esquina de onde começa a descida para a maré. A pequena rua hoje se chama João Claudemiro da Silva Ribeiro, em homenagem a um morador dali mesmo, homem dotado de larga sabedoria prática, com enorme senso de solidariedade humana e que soube bem fazer amigos e influenciar pessoas e situações. Lá embaixo, já chegando à beira da maré e logo à direita está o canto do mangue, “para onde os homens correm a desapertar-se de suas necessidades”, registrava Seu Chico de Zeferino, em pausa de suas leituras das “novidades” dos jornais já de muitos dias, mas acabados de chegar da Bahia, pelas mãos prestativas de Amando de Alvina, marinheiro da Goleta. Não era mesmo outro tempo? Ave Maria!
Passado o Ano Novo, as famílias das beiradas vão começar a chegar. Vão chegar de canoas e pequenos saveiros muita gente das ilhas e das beiradas de Barroquinha, São Francisco e Itiúca; famílias de Nilo e de Taperoá; gente de Camurugi e Jordão; de Graciosa e de Rio do Engenho; muitos de Cajaíba, poucos de Valença. A hospedagem é em casas de parentes e amigos e compadres e, só voltam pra casa, quando começa a sair moqueca de ovos para o almoço!!! São todos devotos de São Benedito e essa visitação nas festas, de inspiração da tradição cristã é também devoção de famílias. O santo traz toda essa gente devota e, desde oito de dezembro a sua Bandeira está levantada num mastro, no alto do Convento.
O levantamento da Bandeira inicia a cada ano, o ciclo das festas e louvores comunitários prestados a São Benedito pelo povo de Cairu e sua vizinhança, desde o tempo em que todos integravam a mesma Capitania de Ilhéus. É manifestação cultural nascida no interior das comunidades primitivas de colonos e escravos, cuidando de preservar a memória e a fé, mas também instituindo formas de solidariedade comunitária frente à pobreza, à doença e à morte. Depois de percorrer cada rua, beco ou viela, entrando em todas as casas de boa vontade para receber homenagens, recolher as preces dos fieis e óbolos para as festas, a Bandeira é levantada diante de numeroso povo devoto, numa renovada manifestação da fé e de afirmação da cultura popular de Cairu. Isto os cairuenses fazem há mais de duzentos anos! Patrimônio comum dos cairuenses, a Bandeira que se levanta a cada ano é ato de fé e manifestação de cultura que engrandecem o espirito e a consciência comunitária. Estão todos tão impregnados dessa cultura que, das ruas por onde a Bandeira passa, se nos calarmos, as pedras gritarão por São Benedito. Nos louvores ao santo vemos a fé evangelizando a cultura e a cultura promovendo a inculturação da fé. A Igreja, de sua parte, sintonizada desde o Concílio Vaticano II com as exigências objetivas da fé e da sua missão evangelizadora, tem em conta o dado essencial de que o encontro entre a fé e as culturas se opera a partir de duas realidades que não são da mesma ordem: a inculturação da fé e a evangelização das culturas. A inculturação da fé é de todos os tempos e lugares; é concomitante com a evangelização desde a pregação de Jesus. Para os camponeses galileus Jesus falava em parábolas, com os mestres de Jerusalém usava a discussão rabínica. Entre brasileiros a inculturação não deve alcançar apenas os grupos populacionais nativos, a variedade de indígenas e afrodescendentes, colonizadores e imigrantes mais recentes. Precisa alcançar também, as mudanças culturais que se espalham pelo país inteiro, retratadas na expansão da cultura urbana, globalizada, cultura fragmentada, centrada no indivíduo.
Sem a experiência da fé não há mensagem a ser inculturada. É o caso de agentes religiosos que pretendem alcançar as pessoas a partir de recursos eletrônicos, efeitos cênicos e um cardápio de práticas religiosas. Quaisquer práticas! Conhecemos por aqui mesmo exemplos dessa tendência que estão levando a uma desfiguração sem precedentes de manifestações culturais, tanto dos grupos associados às festas tradicionais da Igreja, como daqueles outros grupos de manifestações das populações mais antigas. Marujada da Barquinha e Dandoca, em Cairu, são os exemplos mais gritantes dessa realidade. O intento desses agentes e “responsáveis”, não parece a inculturação de uma experiência de fé, mas agradar ao público e por aqui, aos príncipes da ocasião. Em vez de inculturar a fé, desfazem a cultura juntamente com a fé.
A inculturação da fé é, afinal, a evangelização da cultura. Não no sentido de cortejar vaidosamente uma elite cultural, mas no sentido de entender a cultura como a alma de um povo, alma a ser tocada pelo ícone inconfundível do carpinteiro de Nazaré, que na hora do dom de sua vida ousou dizer: Quem me viu, viu o Pai (Jo 14,9). Tocar a alma do povo, não tirar a sua alma por formas culturais impostas pela presunção de uma cristandade que confundiu o Reino de Deus com seu sistema político, ou pela violência colonial, ou pelo poderio econômico que se pretende global. Tocar a alma do povo, descendo até ele para descobrir a poesia de que talvez nem tenha noção; tocar a alma do povo, ensinando-lhe a falar de sua própria realidade para tomar consciência de seu ser, e, assim, forjar a sua própria visão crítica. Entrar em seu sofrimento, para expressar a fé e a esperança na salvação em Cristo; entrar em sua alegria, para cantar a Ressurreição. Não são por outras razões que, para os irmãos e devotos de São Benedito, dentre os quais se destacam em Cairu o pessoal do Reinado de Congos e da Chegança, São Benedito é somente São Benedito, exemplar seguidor de Jesus Cristo – Mestre e único Senhor de todos, devendo a sua Bandeira depois da coroação do novo Rei Congo descer do mastro e se recolher a uma sala de um dos últimos sobrados coloniais. Até aqui, o de número 46 da Rua Direita.
O ano 1942, no entanto, reservava surpresas, advertimos antes.
Chegamos aqui ao tempo oportuno para tratar de episódio marcante de nossa história, o qual, a despeito de sua importância, permanece muito distante do conhecimento da população, mesmo dos remanescentes da primeira metade dos novecentos. Vamos tratar do episódio que passou à história e que ficou conhecido como a Conspirata de Cairu.

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