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A CONSPIRATA DE CAIRU

  • Foto do escritor: Antônio Isaías Ribeiro
    Antônio Isaías Ribeiro
  • 10 de ago. de 2021
  • 5 min de leitura

O vento do pensamento ameaça deixar tudo fora de ordem.

De um lado há os que “já sabem” o que pensar.

De outro os que honestamente não sabem o que dizer...

Antônio Abranches


Uma oposição iluminismo/obscurantismo esteve como a fórmula máxima que deu tintas ao pensamento político por mais de dois séculos e intelectualismo político foi como se denominou a tradição do pensamento político ocidental, a qual perde forças desde os anos 1970. Foi de modo geral a crença de que a esfera mesma da vida pública deve obedecer a leis, regras ou modelos que podem ser encontrados e determinados a partir da teoria política. Do ponto de vista daquele intelectualismo político é a própria vida política que perde a dignidade de dimensão essencial da existência humana para tornar-se, no melhor dos casos, um mal necessário, quando não inteiramente dispensável no que tem de propriamente político. Vista como um conflito de interesses, como uma fonte frequente de corrupção, como ambição desmedida e vaidosa pelo poder, a vida política assim considerada, se encontra frequentemente reduzida à ética e à determinação dos valores morais que deveriam guiar o comportamento do homem de ação. Julgada por padrões de uma filosofia moral, a vida política é frequentemente tida como imoral. Afinal, o que tem nos ensinado a experiência concreta da política?


Pensar é o meio de corresponder aos desdobramentos do agir político, desdobramentos que nos atingem como ruína ou como salvação. Por isso, todo pensar é um repensar, um retomar, novamente, a cada novo tempo, a tarefa de compreender o que se passa, sendo a compreensão um dom do pensamento que, por assim dizer, libera e prepara o juízo político. Apenas quando somos capazes de deixar que os acontecimentos nos falem do fundo de sua extraordinária singularidade é que alcançamos alguma virtude de natureza política, virtude tão importante e de que tanto se carece desde décadas, mas acentuadamente em nossos dias. Eis que aprendemos do filósofo que “não se mede um povo pelos grandes homens que tem, mas por sua capacidade de reconhecê-los quando porventura se apresentam”.



2 Na entrada dos anos 1940 o mundo vinha em guerra desde que a Alemanha invadira e ocupara a Polônia em setembro de 1939. Por toda parte imigrantes alemães passaram a ser tidos e tratados como inimigos. E, enquanto o governo brasileiro sofria pressões para adotar posição contra a Alemanha e seus aliados, estilhaços muito fortes da guerra chegavam a latitudes tão distantes do seu epicentro, mas muito próximas, perto mesmo da população nativa das ilhas do arquipélago de Cairu. Eis que em dezessete de agosto daquele ano, num intervalo de menos de duas horas, entre as 11:30 e as 13:10 horas, um submarino alemão torpedeou e afundou os navios mercantes Itagiba e Arará, no litoral de nossa Ilha Tinharé. Acontecimentos que sacudindo o mundo chegaram até nós, às nossas praias como remanso, mas com a força de tempestade violenta abalando fortemente ilhas e comunidades cairuenses e de municípios vizinhos. Tempestade que causou impactos dolorosos e duradouros.

Naquele ano Estevão Araújo Neto, era ainda um jovem adolescente. Ele vivia em Cairu, andava descalço ou de tamancos nas ruas descobertas de pavimentação desta pequena e antiga cidade do Estado da Bahia. Uma das primeiras do Brasil na cronologia de criação de freguesias, vilas e cidades. Em Cairu, Estevão se iniciava nas artes do mar, acompanhando o seu pai, o Mestre Araújo, nas viagens do Barco Itaú para Salvador e portos do Recôncavo. Hoje, (escrevi estas notas em 2017!) passado dos noventa anos, Estevão se encontra ainda com memória ativa, embora com certa limitação física. Aposentado do serviço público, Estevão vive em Salvador e recorda de uma viagem (acha que em setembro ou outubro de 1942) na qual


Acompanhei papai (Mestre Araújo) e outros homens de Cairu, lembro que Seu Didío, José Monteiro, Adalberto e Heitor Machado e Aurélio Marques para visitar os frades que se achavam presos no quartel da Polícia Militar, nos Dendezeiros”.


Estevão completa, lembrando que


“Foi uma emoção muito grande para papai e os outros homens. Eles todos tinham grande amizade com os frades e alguns como papai, choraram diante da situação em que se achavam aqueles homens; na prisão eles dormiam no chão forrado com jornais”!


Colhi o testemunho do senhor Estevão em Janeiro de 2017, ele, um dos últimos sobreviventes como fonte primária da história naquele ano 1942; ele é das poucas pessoas ainda a recordar a comoção vivida pelos cairuenses com a prisão dos frades, a intimação do prefeito, de secretários do prefeito e de outras pessoas da comunidade, todos denunciados como integralistas e colaboradores com ações de guerra da Alemanha e, assim, acusados de subversão contra a ordem política e social do estado brasileiro. Somente o senhor Estevão recordou-me os nomes de todos os frades, não tendo, porém, igual memória de todos os nomes das demais pessoas detidas e mandadas para Salvador, segundo o mesmo, “jogadas em um barco de pesca”. Da entrevista com o senhor Estevão, concluo que não está mais na sua memória os nomes dos autores das denúncias contra os frades alemães do Convento e contra o prefeito e as outras pessoas.


O ano 1942, já se advertiu antes, reservava surpresas. Isto lembrado, chegamos aqui ao tempo oportuno para a abordagem de episódio marcante da história política, a partir da sede municipal de Cairu. Episódio que a despeito de sua importância, dos danos políticos provocados e dos prejuízos morais derivados, permanece distante do conhecimento da população, mesmo da população remanescente das décadas de 1930 a 1950 – a parte mais antiga dos habitantes locais que vem dos anos mil e novecentos. Estamos falando do episódio que passou à história e que ficou conhecido como a Conspirata de Cairu.


Do que vamos tratar aqui? De matérias esquecidas; importantes, mas esquecidas. Aqui vamos tratar de fatos passados; também de versões desses fatos; outras versões em narrativas distintas. Tudo está num passado do qual não se fala porque não se sabe muito, não se conhece. Ou porque detalhes não são necessários, detalhes suscitam questões, desdobramentos, investigação e podem resultar causa de incômodos. Mas, há um passado que tem escapado do conhecimento das gerações, mesmo como referência para o presente. Quatro frades franciscanos foram tirados do Convento e presos por mais de três meses em Salvador; o prefeito Raul Miranda e seus secretários passaram vexames e foram exonerados. Não muitos já falaram ou escreveram sobre o tema.


O prazer da leitura e da reflexão, da busca, da pesquisa histórica, o prazer vem do exercício do diálogo entre passado e presente, diálogo que é base da história; vem também do exercício de pensar, vem mesmo da importância e necessidade de no presente repensar passados, reinterpretando acontecimentos, as circunstâncias que os cercaram – os locais em que aconteceram, as instituições e pessoas envolvidas, as suas causas centrais, os desdobramentos que provocaram, esgotando versões em narrativas apressadas, porque o tempo é provocante e a sua passagem nos faz lembrar que o conhecimento e o saber histórico na sua dimensão própria vão ensejando a desejada reinterpretação. Eis que cada tempo tem o seu próprio contexto. E a vida muda, nem sempre na direção esperada, nem sempre no sentido desejado. É preciso, contudo, seguir na busca de objetivos de transformação, de aperfeiçoamentos, de revelação da verdade.


E encontrar histórias dentro da História!




 
 
 

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