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Cidades não abandonam a sua história

  • Foto do escritor: Antônio Isaías Ribeiro
    Antônio Isaías Ribeiro
  • 31 de mar. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 2 de abr. de 2020

donam a sua história


EXPOSIÇÃO À CÂMARA DE VEREADORES, ATENDENDO A REQUERIMENTO DA MESMA, POR INDICAÇÃO DO VEREADOR CLAUDIO BRITO.

Antônio Isaías do Rosário Ribeiro *

Assim como o Brasil tem a sua Constituição da República (República Federativa do Brasil), promulgada em 05/10/1988, o Reino de Portugal, teve as Ordenações do Reino, que como a nossa constituição, embasavam o seu ordenamento jurídico. As Ordenações estiveram sempre vinculadas à figura do Rei que as promulgaram. Assim, é que, ao longo dos séculos, os portugueses tiveram o seguinte ordenamento jurídico:

1. ORDENAÇÕES AFONSINAS – uma coletânea de leis durante o reinado de Afonso V, promulgadas em 1446.

2. ORDENAÇÕES MANUELINAS – atualização das Ordenações Afonsinas realizadas durante o reinado de Manuel I, que esteve no trono português entre 1496 e 1521.

3. ORDENAÇÕES FILIPINAS – ampliação das Ordenações Manuelinas, sob Filipe II, de Espanha, durante o período do domínio espanhol (1580-1640); vigoraram no Brasil de 1603 a 1616.

No seu conjunto, as Ordenações do Reino se mantiveram até 1769 quando o Ministro Sebastião José de Carvalho e Mello, Conde de Oeiras e Marquês de Pombal, simbolizou a autoridade do Estado sob o reinado de José I e fez editar a Lei da Boa Razão. Essa lei, sem revogar as Ordenações Filipinas estabeleceu novos critérios para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas em todo o Império Colonial Português.

Essa Lei da Boa Razão foi publicada em 18 de agosto de 1769 pelo rei José I, tendo como principal objetivo reformular as matérias concernentes às fontes do direito em Portugal, bem como fornecer um critério seguro e objetivo sobre o que seria a boa razão sobre a qual se referiram as Ordenações Filipinas quando a estabeleceu como critério à aplicação do direito romano.

Como acham alguns historiadores, o Império Colonial Português foi o primeiro império global da história, além de ser o mais antigo dos impérios coloniais europeus modernos, cobrindo quase seis séculos de existência, a partir da Conquista de Ceuta, em 1415, até a concessão de soberania a Timor-Leste, em 2002. O nosso país, enquanto colônia foi joia de grande valor de tal império, valor que se estendeu à nossa cidade – na origem a aldeia Aracajuru (Casa do Sol) dos tupinambás; em seguida a Vila de Nossa Senhora do Rosário de Cairu, mandada fundar em 1565 e instalada em 1610.

A qualificação das cidades históricas, cidades como a nossa, é estratégica para recuperar o seu papel simbólico, o seu referencial de cultura; porque cidades não abandonam a sua história nem a sua cultura. Foi pensando assim, que em 2010 a administração do prefeito Hildécio Meireles saiu à procura de uma definição do Dia da Cidade de Cairu. Peço, por isso, a atenção dos senhores para o que segue:

1. Em primeiro lugar, é preciso que se tenha em conta que o dia de uma cidade, de qualquer cidade, deve estar ligado ao profundo da história e da cultura de tal cidade. E em Cairu nada é tão profundo quanto a sua história e a sua cultura, estando Cairu entre os primeiros núcleos de povoamento fundados no Brasil, a partir de um aldeamento indígena – a Aracajuru dos tupinambás – seguida de uma vila fundada e instalada nas primeiras décadas da colonização.

2. Em segundo lugar, é preciso também ter em conta que o Município constitui a célula mais próxima dos cidadãos da federação, por isso deve ser considerado como essencial para a estrutura organizacional e administrativa do Estado, razão pela qual a eleição de seus representantes e a liberdade para legislar são elementos importantes para a consecução dos fins federativos.

Na Colônia, somente nas localidades que tivessem pelo menos a categoria de vila, concedida por ato régio, podiam instalar-se as câmaras municipais, cuja estrutura foi transplantada de Portugal, a princípio, na conformidade das Ordenações Manuelinas e, mais tarde, das Filipinas. Cairu vai receber e instalar a sua Câmara em 1610. As câmaras eram constituídas por um presidente, três vereadores, um procurador, dois almotacéus (agentes que tinham função de polícia local, inclusive zelando pela higiene, segurança, pesos e medidas), um escrivão, um juiz-de-fora vitalício e dois juízes comuns, indicados pelos vereadores, que eram eleitos entre e pelos homens-bons.

Descrevendo as câmaras da Colônia, observa o pesquisador Carvalho Mourão:

Tinham funções muito mais importantes do que as das modernas municipalidades. Assim é que, além das atribuições de interesse peculiar do município, exerciam elas funções hoje a cargo do Ministério Público, denunciando crimes e abusos aos juízes, desempenhavam funções de polícia rural e de inspeção de higiene pública, auxiliavam os alcaides no policiamento da terra e elegiam grande número de funcionários da administração geral, tais como: os almotacés, assistidos do alcaide-mor; os depositários judiciais, o do cofre de órfãos, o da décima, os avaliadores dos bens penhorados, o escrivão das armas, os quadrilheiros – guardas policiais do termo – e outros funcionários. Tinham, além disso, as Câmaras o direito de nomear procuradores às Cortes”... (Mourão, 1997, p. 82)

O Estado Novo e a centralização de Getúlio Vargas.

O Decreto 10.724.

A ascensão de Getúlio Vargas em 1930 encontrou o país sob o ordenamento da Constituição de 1891. Após um golpe de Estado, Getúlio centralizou o governo, assumindo o Poder Executivo e o Poder Legislativo, ao dissolver o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais em novembro de 1930, demitindo todos os governadores de Estado, com exceção do de Minas Gerais, nomeando em seus lugares interventores. Os Municípios perderam então toda a sua autonomia, juntamente com os Estados-Membros, uma vez que naquele período, prevaleceu a concentração de poderes no Executivo Federal ou, mais especificamente, nas mãos do ditador; adiante, com o Estado Novo de 1937, cessou a eleição dos prefeitos, só a concedendo aos vereadores. O interventor não passava de um preposto do Presidente da República, com todas as principais atribuições municipais entregues a um intendente – chefe do Executivo municipal. Não obstante, acima desse, estava o Conselho Administrativo estadual, órgão que controlava toda a atividade dos Municípios, restringindo qualquer iniciativa local. (COSTA,1999, p.47).

É nesse quadro de ordenamento ditatorial, de supressão da liberdade, de desprezo da participação popular, que o interventor federal na Bahia, Landulfo Alves de Almeida, edita o Decreto nº 10.724, com a finalidade da organização geral dos municípios, eis que havia municípios com duas sedes, de limites territoriais e até com diversidade de nomes, coisas assim. É inspiração desse decreto a mudança de denominação de nossas ruas fixadas anteriormente, ao longo dos séculos, na constância de sua formação histórica, da tradição, da cultura. Trocou-se Rua Direita, por Rua Barão Homem de Mello; trocou-se Rua do Fogo, por Rua Visconde de Cairu; trocou-se Rua de Cima por Rua Benjamin Constant; trocou-se Alto do Convento por Praça Marechal Deodoro. Tudo autoritariamente, com grande desprezo pela população nativa e os demais aqui residentes.

A Constituição de 1988

Passados a colonização e as Ordenações do Reino, as Constituições do Império e as transitórias constituições da República; passados também o Estado Novo e o centralismo de Getúlio Vargas, passados finalmente os Atos Institucionais e a Constituição autoritária dos militares de 1967, o país vive agora sob a Constituição Cidadã de 1988. Nos seus vinte e cinco anos agora completados, ela tem ajudado o país a construir uma base de governança, motivou iniciativas para tornar a sociedade mais justa, devolveu a liberdade de expressão e seus desdobramentos, como a diversidade de opinião, o choque de ideias que sempre produz mais luz do que calor. É a partir da liberdade de expressão que todas as outras ganham existência.

A Constituição ampliou a autonomia dos Municípios, conferindo-a nos aspectos político, administrativo e financeiro, permitindo a elaboração de sua lei orgânica, bem como, fazendo inúmeras referências às suas competências, reconhecendo a importância dessa entidade, que é retratada nos seguintes termos por Nelson Nery Costa:

“São inúmeras as disposições constitucionais que se referem expressamente aos Municípios, mostrando o reconhecimento desta célula territorial e política da federação brasileira, como fundamental para assegurar o sistema democrático-representativo. A Constituição Federal de 1988, ao fixar as diversas competências do Município ao longo do seu texto, assegurou-lhe autonomia jamais conhecida antes e que representou o desenvolvimento normal, que esta importante entidade federativa tem nas instituições políticas no Brasil”.

É nesse outro novo quadro, de autonomia e de participação, que a liberdade para legislar foi determinante para que essa Egrégia Câmara, interpretando a vontade daqueles que no século XVII denominaram o núcleo de população então existente de Vila de Nossa Senhora do Rosário de Cairu, instalaram a Câmara de Vereadores como a sua instância de governança e, usando de tal liberdade, aprovou a proposta do Executivo definindo o Sete de Outubro como o Dia da Cidade de Cairu.

Foi assim, celebrando um tempo tão importante, que Executivo e Câmara de Vereadores quiseram homenagear todos aqueles que ao longo do tempo lutaram, anônima e desinteressadamente com seus próprios meios e nos legaram o grande acervo de História e Cultura, de saberes e fazeres e modos de falar, de ser, que hoje fazem desta “Vila” e Cidade de Cairu de 400 anos, um “espaço de vivência histórica, humana e natural, envolvido por ambiente peculiar”.

A RUA DIREITA DE CAIRU E A LADEIRA DA MONTANHA DE SALVADOR

Não poderia, no entanto, finalizar esta exposição, sem antes também registrar, primeiro a importância para nós de Cairu, da denominação Rua Direita e, segundo, a origem da troca do nome Rua Direita para Rua Barão Homem de Mello.

1. A origem do nome Rua Direita, tanto em Cairu, quanto em outras cidades está na Sagrada Escritura. Precisamente no livro Atos dos Apóstolos, capítulo 9, versículos 1-18. Ali está retratada a conversão do apóstolo Paulo. Traduzida a Bíblia do grego para o latim, as classes instruídas de Portugal tomaram conhecimento do fato histórico da conversão de Saulo, de Tarso, para Paulo, apóstolo. Conversão que é iniciativa pessoal de Jesus, o qual depois de ter-se manifestado a Saulo, na estrada de Damasco, o faz conduzir-se à casa de Judas, na Rua Direita (de Damasco) para ali receber a visita de Ananias e a mensagem do mesmo Jesus. Esta é também uma razão porque, em nosso Cairu, as pedras pavimentam a mais antiga das ruas conhecidas; figura daquela mesma Rua Direita de Damasco, para onde o Cristo encaminhou Saulo, o perseguidor, para encontrar-se com Ananias a fim de se transformar em Paulo, defensor, seguidor e apóstolo seu.

2. Quem foi o Barão Homem de Mello? Que relevância teve esse homem para a memória de nossa cidade e de nossa gente? Francisco Inácio Marcondes Homem de Mello, político e intelectual paulista, foi professor, historiador e geógrafo. Em 1918 foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a vaga de José Veríssimo. Entre as suas obras publicadas, destaca–se o "Atlas Imperial do Brasil" em 1889, e mais tarde difundido sob o título "Geografia – Atlas do Brasil". Dentre os diversos cargos que ocupou, destacam-se: Presidente das Províncias de São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul e Bahia; Major honorário do Exército Brasileiro, foi condecorado a 7 de julho de 1877, com o título de "Barão do Governo Imperial", daí "Barão Homem de Mello".

3. Presidente da Província da Bahia entre 1878 e 1879, sua principal obra pública na capital baiana foi a abertura da passagem na montanha - ligando as cidades Alta e Baixa (com extensão de 661,9 m e ligando a então "Rua dos Ourives" ao "Largo do Teatro" - conhecida em Salvador por "Ladeira da Montanha", mas nomeada em homenagem ao Barão.

Finalmente, senhor Presidente e honrados Vereadores, não se deseja aqui desmerecer a figura do Barão Homem de Mello, seja como político, seja como intelectual e nem mesmo como presidente, por um ano, da Província da Bahia. Deseja-se tão-somente retomar o sentido histórico, muito mais forte, para a memória não apenas histórica, mas profundamente cultural, da definição do Dia da Cidade, como da denominação secular de nossa Rua Direita.

Cairu, 30 de setembro de 2013.

*Economista, natural de Cairu, ex-Secretário Municipal de Cultura

 
 
 

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