Um Rei, um Coronel
- Antônio Isaías Ribeiro
- 26 de nov. de 2019
- 3 min de leitura
Atualizado: 28 de nov. de 2019
Há três mil anos, num fim de tarde, o Rei Davi sobe à varanda mais alta do seu palácio. Olhando em volta, descobre uma jovem mulher a banhar-se na proximidade. O rei solta duas ordens. Primeiro, quer saber quem é a bela mulher. Depois, que a tragam logo à sua varanda.
– É Betsabéia, a mulher que encanta os olhos do rei!
– Mas é a esposa de Urias heteu, vem a resposta.
Naquele fim de tarde, sem mais tarefas a atender, o rei, de início, ocioso, já agora, também voluptuoso, agitado. O impacto do primeiro momento, o encanto, a sedução – forças que estão, desde sempre, a submeter o homem. Desde um palácio real há três mil anos e, como em ondas, em tempos contemporâneos alcançando tantos lugares. E tanta gente!
Um rei e a mulher de um soldado do rei! Os dois conversam, falam de suas histórias; a dele, de todos conhecida; a dela, começando ali. Os dois se deitam. Betsabéia volta para casa e, em pouco, vai descobrir-se grávida. Quem seria o pai senão o rei Davi? Urias, oficial do exército e marido de Betsabéia está ausente, a serviço, em missão de estado; e ainda, está cumprindo a abstinência ritual prescrita aos que lutam em guerra santa.
Dos lados de cá, há várias décadas já, num início de madrugada cairuense, anotou Gilson Mucugê: Zé Ferreira da Cunha, coronel da Guarda Nacional, (muito lembrado e pouco imitado) sobe à varanda do seu sobrado, depois de demorada prosa com o pessoal dali do porto mesmo – pescadores, trabalhadores da madeira e da piaçava, calafates, carregadores, ganhadores, embarcadiços. O Coronel permanece sem sono e está há horas de um lado para o outro da varanda. Dos lados do Convento, os ruídos dos voos de corujas e corujões; dos lados da maré e dos mangues de Pilões e Tororó, os cantos surdos da avó da lua; lá no canal de Pacubu, os fachos de luz das canoas de pescadores andarilhos adentrando a boca do rio de Subaúma. Em meio a esses sons e imagens, Zé Ferreira da Cunha, coronel da Guarda Nacional, espera o sono. O lamento de dois homens que procuram a sua canoa, de repente rompe o silêncio. Eles têm viagem de urgência. Caso sério de saúde de mulher em trabalhos de parto; situação especial, continuidade de angústia e sofrimento, mas também de solidariedade comunitária tantas vezes assumida pelas parteiras. Incríveis mulheres de nossas raízes!
Os homens não encontram a sua canoa, deixada ali mesmo, naquele lugar passado a eles desde gerações, regra antiga, cultura, tradição da comunidade. Soltar e levar uma canoa sem o conhecimento do seu dono é grave transgressão do trato e da vida comunitária. Quem teria, na comunidade, cometido essa falta? Zé Ferreira da Cunha, coronel da Guarda Nacional, insone em sua varanda, acode à situação e, diante do inadiável, ordena aos dois homens alugar ali mesmo outra canoa, chamar dois outros homens, bons de remo e remarem os quatro e fazer sua viagem, levando a mulher em dores de parto para atendimento médico em Taperoá.
Três horas mais tarde, Já com as barras do novo dia no horizonte, chegam dois outros homens com a canoa “roubada” trazendo farta pescaria, como era comum então. Ah! Quanto peixe havia naqueles tempos! Zé Ferreira da Cunha, coronel da Guarda Nacional, ainda sem sono, chama os dois, fala do ocorrido, aplica-lhes correção moral, e, manda que vendam logo o pescado, deem a parte da canoa, paguem o trabalho dos dois remeiros que acompanharam o dono da canoa roubada; paguem também a diária da canoa alugada. A justiça se impõe!
Grande lição para a vida contemporânea! Davi, rei e unificador das doze tribos de Israel, estava na função de servir ao povo, promovendo o bem-estar social, defendendo-o de inimigos e fazendo-o viver segundo a justiça e o direito. Ora, o rei trai completamente a sua função de autoridade: afasta-se da causa do povo, torce a justiça e viola o direito, usando o poder para satisfazer caprichos pessoais. Já Zé Ferreira da Cunha, coronel da Guarda Nacional, muito lembrado e pouco imitado, coloca-se como cabe a um líder, empregando capacidades para mediar conflitos.
As Escrituras Santas ensinam que o poder é dom de Deus e que em mãos humanas é função de serviço, na promoção da harmonia e do equilíbrio comunitário. O poder torna-se mau, quando usado para satisfazer a caprichos pessoais e interesses de grupos pesando sobre o povo. Tal como segue acontecendo por aqui mesmo.
A Isaías Ribeiro
Da Rua do Fogo, dezembro de 2000.
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